Especialista em voz detalha como é o processo de modificação e compartilha alternativas não cirúrgicas que podem ter bom resultado. Médico explica por que a influenciadora precisou ficar sem falar.
As cirurgias de modificação da voz têm se tornado uma alternativa significativa para pessoas transgênero e outros pacientes que desejam alinhar suas vozes com sua identidade de gênero. Entre os procedimentos mais comuns estão a glotoplastia, que afina a voz, e a tireoplastia tipo 3, que a torna mais grave.
Mateus Aires explica tudo sobre as cirurgias de modificação da voz e o caso de Maya Massafera”>
A glotoplastia é frequentemente escolhida por mulheres trans e envolve o encurtamento das pregas vocais para criar um tom mais agudo. Já a tireoplastia é voltada para homens trans ou pacientes que desejam uma voz mais grave, e consiste na manipulação da cartilagem laríngea.
Dr. Mateus Aires é um médico otorrinolaringologista especialista em laringologia e cirurgias da voz, dedicado a transformar vidas por meio dessas cirurgias. Com uma abordagem cuidadosa e personalizada, ele avalia cada paciente para entender suas necessidades específicas e garantir que o procedimento escolhido seja o mais adequado. Nesta reportagem, o médico detalha cada passo do processo das cirurgias e comenta sobre a cirurgia da influenciadora Maya Massafera.
Como é produzida a frequência da voz?
Dr. Mateus Aires – A frequência fundamental, que é a frequência de vibração das cordas vocais, determina se uma voz é mais fina (aguda) ou mais grossa (grave). Quando a prega vocal (corda vocal) vibra numa frequência maior, acima de 170 Hz, o som emitido é mais agudo e tende a ser classificado como feminino.
Essa classificação é um comportamento aprendido entre os 5 e 10 anos de idade, pois até os 5 anos, não conseguimos identificar se uma voz é masculina ou feminina, já que não fomos ensinados pela sociedade.
Se a prega vocal vibra menos de 140 vezes por segundo, o som emitido é mais grave e tende a ser classificado como masculino. A diferença na frequência é determinada por três fatores físicos:
- Comprimento: uma prega vocal maior vibra menos vezes por segundo, emitindo um som mais grave e masculino
- Tensão: uma prega vocal mais esticada vibra mais vezes por segundo, emitindo um som mais agudo e feminino
- Densidade: uma prega vocal mais pesada e densa vibra mais devagar, emitindo um som mais grave e masculino
Após a puberdade, a prega vocal feminina é mais curta, fina e um pouco mais esticada que a masculina, resultando em um som mais agudo, enquanto a prega vocal masculina é mais longa e menos tensa, resultando em um som mais grave.
Quais os tipos de cirurgias que existem para mudar a voz?
Dr. Mateus Aires – Existem cirurgias para modificação do pitch vocal, que é nossa percepção de quão aguda ou grave é uma voz. As cirurgias de modificação do pitch vocal incluem:
Feminização da voz (agudização): a cirurgia ideal é a glotoplastia
Masculinização da voz (agravamento): a cirurgia ideal é a tireoplastia tipo 3
Como essas cirurgias são realizadas e quais são os resultados esperados?
Dr. Mateus Aires – A glotoplastia é uma técnica endoscópica, realizada sem cicatriz externa. Sob anestesia geral, um microscópio é acoplado ao aparelho cirúrgico para a magnificação das pregas vocais, e a cirurgia de encurtamento da prega vocal é realizada.
A tireoplastia tipo 3 é realizada por meio de uma incisão de cerca de 3 cm no pescoço. A cartilagem tireoide (contendo o pomo de Adão) é acessada, e suturas são feitas para modificar sua arquitetura e afrouxar a prega vocal. Uma prega vocal mais frouxa vibra em uma frequência menor, emitindo uma voz mais grave.
É possível que os resultados das cirurgias de modificação vocal possam variar entre os pacientes?
Dr. Mateus Aires – Sim, os resultados variam. Cada paciente tem uma anatomia única, e a percepção da voz, seja mais grave ou mais aguda, depende de fatores comportamentais (como a força com que falamos) e da anatomia do trato vocal (incluindo garganta, cavidade oral e nariz). Embora técnicas cirúrgicas semelhantes sejam usadas, cada paciente terá um resultado personalizado, com variações na gravidade e agudeza da voz.
Quais são os critérios para um paciente ser considerado apto para as cirurgias nas cordas vocais?
Dr. Mateus Aires – Os critérios para considerar um paciente apto para as cirurgias nas cordas vocais incluem uma discussão detalhada sobre os riscos e benefícios da cirurgia durante a consulta pré-operatória. É crucial alinhar as expectativas do paciente, pois os resultados podem ser variáveis e imprevisíveis em termos de quão aguda ou grave a voz ficará após a cirurgia.
Existem contraindicações?
Dr. Mateus Aires – As contraindicações para essas cirurgias incluem:
Doenças clínicas graves: condições médicas que aumentam o risco cirúrgico
Comorbidades psiquiátricas não controladas: pacientes com distúrbios psiquiátricos não gerenciados adequadamente podem não ser bons candidatos
Malformações da laringe: anomalias anatômicas que impedem a realização da cirurgia
Expectativas irreais: pacientes que não compreendem ou aceitam as limitações e variabilidades dos resultados cirúrgicos
A glotoplastia é a cirurgia de escolha para afinar a voz, especialmente em mulheres trans. Como essa cirurgia é realizada e quais são os principais benefícios observados?
Dr. Mateus Aires – A glotoplastia é uma técnica endoscópica que visa o encurtamento das pregas vocais. Sob anestesia geral, um microscópio e instrumentos delicados de laringe são utilizados para suturar uma região das pregas vocais, encurtando-as. Esse encurtamento aumenta a frequência de vibração das pregas vocais, resultando em uma voz mais aguda.
A analogia com as cordas de um violão ilustra bem o processo: as cordas mais finas e esticadas vibram a uma frequência mais alta, produzindo sons mais agudos, enquanto as cordas mais grossas e frouxas vibram a uma frequência menor, produzindo sons mais graves. Com a glotoplastia, transformamos uma “corda” vocal longa, grossa e frouxa em uma mais curta e tensa, produzindo assim um som mais agudo.
Quais são os cuidados pós-operatórios recomendados para pacientes que realizam a glotoplastia e quanto tempo leva para a voz atingir os resultados?
Dr. Mateus Aires – Os cuidados pós-operatórios são essenciais para o sucesso da glotoplastia e incluem três aspectos principais:
Cirurgia tecnicamente bem-sucedida: a precisão técnica durante a cirurgia é crucial.
Cuidados pós-operatórios pelos pacientes: incluem repouso vocal absoluto por 10 a 15 dias, durante os quais o paciente não deve falar, é recomendado evitar atividades físicas intensas por 30 dias e alimentos que possam dificultar a cicatrização ou provocar engasgos, como alimentos apimentados, farináceos (como cuscuz e arroz seco), para evitar tosse que possa prejudicar a recuperação das pregas vocais.
Fonoterapia: É fundamental e deve ser iniciada aproximadamente no 11º dia após a cirurgia, uma vez que a paciente comece a falar novamente. A voz, inicialmente, pode ser extremamente rouca e difícil de ser emitida, o que chamamos de esforço fonatório. Sessões semanais de fonoterapia são recomendadas para ajudar a limpar a voz, reduzir o edema e fortalecer a nova configuração vocal.
Geralmente, são recomendadas 10 sessões semanais a partir da terceira semana após a cirurgia. Os resultados esperados incluem uma voz mais limpa em torno de três meses e a voz final estabilizada em aproximadamente seis meses, dependendo da adesão do paciente à fonoterapia e aos exercícios vocais recomendados.
A influenciadora Maya Massafera mencionou que só terá a voz final em três meses após sua cirurgia nas cordas vocais. Poderia explicar por que alguns procedimentos têm um tempo de recuperação mais longo?
Dr. Mateus Aires – O tempo de recuperação mais longo após uma cirurgia nas cordas vocais, como a glotoplastia, é devido à delicadeza das pregas vocais. Por exemplo, a prega vocal feminina tem cerca de 1,5 cm, e a cirurgia é microscópica. O tempo de cicatrização e reabsorção do inchaço após a cirurgia de laringe é geralmente em torno de dois meses. No entanto, na glotoplastia, que envolve uma manipulação mais extensa das duas pregas vocais, o resultado final pode levar de três a seis meses para ser alcançado. Este tempo permite que as pregas vocais cicatrizem completamente e se ajustem à nova configuração.
Existem riscos ou complicações comuns associadas às cirurgias de modificação da voz? Como esses riscos são minimizados?
Dr. Mateus Aires – Sim, existem riscos e complicações. Na glotoplastia, a principal complicação é a falha na cicatrização, que pode resultar na soltura dos pontos, levando ao insucesso cirúrgico. Isso ocorre em cerca de 10% das pacientes, especialmente entre aquelas que fumam ou que não seguem o repouso absoluto recomendado após a cirurgia.
Por exemplo, a influenciadora Maya Massafera teve uma intercorrência no olho relacionada à anestesia, o que não estava relacionado à glotoplastia. Este problema temporário na visão complicou seu pós-operatório, afetando emocionalmente seu repouso vocal, resultando na soltura dos pontos e na necessidade de refazer a cirurgia.
Para minimizar esses riscos, é crucial seguir um repouso vocal absoluto no pós-operatório, cuidar da alimentação, evitar atividades físicas, não fumar e não consumir álcool durante pelo menos 30 dias após a cirurgia.
Na tireoplastia, a principal complicação é a infecção na ferida operatória. Esse risco é minimizado com repouso adequado para evitar inchaço ou sangramento no pescoço e com o uso de antibióticos prescritos após a cirurgia.
Quais são as principais diferenças entre os resultados esperados da tireoplastia e da glotoplastia em termos de qualidade vocal e satisfação dos pacientes?
Dr. Mateus Aires – A tireoplastia geralmente apresenta resultados imediatos. Após pelo menos cinco dias de repouso vocal absoluto, o paciente costuma apresentar uma voz mais grave ao voltar a falar, embora inicialmente a voz possa ser um pouco mais fraca.
Na glotoplastia, quando a paciente volta a falar, a voz costuma estar bastante rouca, dificultando a percepção imediata do pitch. O resultado final é geralmente observado em torno de três meses após a cirurgia.
Ambas as cirurgias costumam proporcionar alta satisfação aos pacientes, que relatam uma voz que melhor representa o gênero com o qual se identificam. A tireoplastia oferece uma mudança mais imediata na qualidade vocal, enquanto a glotoplastia requer mais tempo para alcançar os resultados desejados, mas ambos os procedimentos são eficazes em alcançar os objetivos de modificação vocal dos pacientes.
Para pacientes que desejam modificar a voz, como é realizado o processo de avaliação e planejamento cirúrgico? Quais profissionais estão envolvidos além do otorrinolaringologista?
Dr. Mateus Aires – O processo de avaliação e planejamento cirúrgico para modificação da voz começa com uma consulta pré-operatória, que pode ser feita de forma online para pacientes de outras cidades, estados ou países. Durante essa consulta, o otorrinolaringologista avalia a queixa do paciente, entendendo o que o incomoda na voz e discute os riscos e benefícios da cirurgia. É importante compreender a história do paciente, especialmente para pessoas trans, incluindo quando reconheceram seu gênero, como foi o processo de transição e o impacto da voz em sua qualidade de vida.
Além da consulta com o otorrinolaringologista, é essencial realizar um exame de videolaringoscopia para visualizar a anatomia das pregas vocais e planejar as técnicas cirúrgicas adequadas. Uma consulta com um fonoaudiólogo é fundamental para identificar se a fonoterapia pode ser suficiente para melhorar o pitch da voz, evitando a necessidade de cirurgia. O fonoaudiólogo também avalia dados objetivos da voz, como a frequência fundamental, importantes para acompanhar o sucesso da cirurgia.
Outros profissionais envolvidos no processo incluem um cardiologista para avaliação pré-operatória e parecer cardiológico, um endocrinologista para avaliar e controlar os hormônios, e a realização de exames de sangue para garantir uma cirurgia segura com o melhor resultado possível.
Pacientes de outras cidades são orientados a chegar pelo menos um dia antes da cirurgia e a permanecerem no local por sete a dez dias para um acompanhamento mais próximo no pós-operatório imediato.
Como essas transformações vocais impactam a vida e o bem-estar dos pacientes?
Dr. Mateus Aires – As cirurgias de modificação da voz têm um impacto profundo na vida e no bem-estar dos pacientes. Desde 2018, temos realizado esse tipo de cirurgia em pacientes do Brasil e de outros países, e é sempre emocionante ver as transformações pós-operatórias. Pacientes relatam que, ao conseguir uma voz que corresponde ao seu gênero, eles podem finalmente expressar quem realmente são. Isso aumenta significativamente sua autoestima e reduz a disforia de gênero. Muitos pacientes mencionam que não são mais identificados erroneamente ao telefone e não sofrem mais preconceito relacionado à sua voz. Essas mudanças trazem uma enorme satisfação e gratificação, tanto para os pacientes quanto para os profissionais envolvidos.
Além das cirurgias para engrossar e afinar a voz, existem outros procedimentos ou terapias para pacientes que buscam readequação vocal?
Dr. Mateus Aires – Sim, a fonoterapia é extremamente importante e, em alguns casos, pode ser suficiente para a adequação vocal ao gênero. Para homens trans, a terapia hormonal com testosterona geralmente leva a uma voz mais grave e grossa. A cirurgia é reservada para aqueles que, após pelo menos um ano de terapia hormonal, não obtiveram o resultado vocal desejado.
Para mulheres trans, a terapia hormonal não afeta a voz. Se a fonoterapia não for eficaz em feminilizar a voz, a glotoplastia é o tratamento indicado. A fonoterapia pré e pós-operatória é fundamental para maximizar os resultados e adaptar a voz à nova configuração das pregas vocais.
Como a colaboração com fonoaudiólogos é importante no processo de recuperação e adaptação vocal pós-cirurgia?
Dr. Mateus Aires – A colaboração com fonoaudiólogos é essencial no processo de feminização vocal. Pelo menos 1 /3 do sucesso nesse processo se deve à fonoterapia. Um fonoaudiólogo especialista em voz, acostumado com a avaliação pré e pós-operatória e com a orientação de exercícios de readaptação, é fundamental. A fonoterapia ajuda a limpar a voz, tornando-a mais forte e removendo o edema nas pregas vocais após a cirurgia. Isso garante uma recuperação mais eficiente e uma adaptação vocal adequada, permitindo que o paciente alcance os melhores resultados possíveis.
É possível reverter os resultados dessas cirurgias em caso de arrependimento ou insatisfação por parte do paciente?
Dr. Mateus Aires – Nos casos de arrependimento, a reversão das cirurgias de modificação da voz não é possível. A glotoplastia, por exemplo, cria uma cicatriz que, mesmo podendo ser parcialmente removida, não é um processo simples nem garante a reversão total. A tireoplastia, por sua vez, envolve a remoção de partes da cartilagem, tornando seus resultados irreversíveis.
Quanto à insatisfação, há algumas opções de ajustes após o período de recuperação de seis meses. Podemos propor complementações da cirurgia, como aumentar a área de sinéquia (cicatriz) criada na cirurgia inicial ou associar outras técnicas cirúrgicas, como a vaporização do músculo vocal, que diminui a massa da prega vocal. Isso pode tornar a voz mais aguda, semelhante ao efeito de uma corda de violão mais fina e tensionada, que vibra em uma frequência maior.
A tecnologia e os avanços na otorrinolaringologia têm impactado a eficácia e a segurança das cirurgias de modificação da voz? Poderia compartilhar algumas inovações recentes nessa área?
Dr. Mateus Aires – Os avanços tecnológicos e científicos têm melhorado significativamente a eficácia e a segurança das cirurgias de modificação da voz. Primeiramente, os avanços na segurança da anestesia tornaram essas cirurgias extremamente seguras do ponto de vista anestésico, proporcionando tranquilidade tanto para o paciente quanto para o cirurgião durante o procedimento.
Uma inovação importante é a laringoestroboscopia, um exame realizado no consultório que permite visualizar a anatomia das cordas vocais em câmera lenta. Essa tecnologia ajuda a identificar alterações estruturais mínimas, quase microscópicas, que não eram detectáveis anteriormente. Isso é de extrema importância para planejar com precisão a extensão da cirurgia nas pregas vocais.
Além disso, o aumento no número de publicações científicas nos últimos dez anos tem fortalecido a evidência científica sobre essas cirurgias. Com mais estudos e dados disponíveis, os cirurgiões podem refinar as técnicas cirúrgicas, aumentando a eficácia e a segurança dos procedimentos. Por exemplo, temos três publicações internacionais sobre o tema e vamos apresentar uma delas no congresso americano de otorrinolaringologia em setembro.
Para Dr. Mateus Aires, “realizar cirurgias de modificação da voz é extremamente gratificante, pois cada resultado positivo tem um impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes. Pequenas mudanças, como uma mulher trans ser chamada de senhora ao telefone, fazem uma grande diferença. Muitas vezes, a sociedade classifica a voz como masculina, mesmo que a aparência visual seja feminina, o que pode causar desconforto e disforia de gênero. Poder ajudar e trabalhar com a população LGBT é uma grande satisfação”.
“Desde que começamos a falar sobre essas cirurgias em congressos, especialmente a partir de 2020, a recepção tem sido cada vez mais positiva. Inicialmente, as salas estavam vazias, mas hoje, tanto em congressos brasileiros quanto internacionais, as sessões estão lotadas. É encorajador ver o crescente interesse e acolhimento de profissionais que respeitam e prestam assistência integral à saúde dessa população, conforme determinado pela constituição e pelo código de humanidade. É uma honra e uma alegria poder contribuir e acolher essa comunidade”, finaliza o médico.
Link da Mídia: https://jornaldebrasilia.com.br/blogs-e-colunas/analice-nicolau/dr-mateus-aires-explica-tudo-sobre-as-cirurgias-de-modificacao-da-voz-e-o-caso-de-maya-massafera/